Se hoje ela chora por ter perdido um pedaço, é de se entender. Lembro de quando fui embora de mim. Me perdi sem querer deixar rastros. Parei de dar água ao girassol, descasquei as capas dos livros mais bem conservados. Deixei ir embora minha caixinha de cartas antigas. Qualquer coisa pra me livrar das lembranças de um pedaço que talvez nunca tenha sido meu, mas que cabia perfeitamente. Foi difícil aceitar que não haveria mais bilhetes atrás da porta, nem suco de manga bem gelado na geladeira, naquele copinho branco, com um coração amarelo desenhado. Aos poucos fui aprendendo a gostar um pouco mais de laranja. Me diziam que chorar era proibido. Por tempos eu era silêncio, no medo de deixar escapar uma lágrima ao abrir a boca. E tudo que eu fazia era dormir, acordar e esperar alguém bater à porta. Tudo servia como distração, até mesmo guardar cartas recentes e não lidas embaixo da almofada do sofá.
Se hoje ela chora, é porque sente falta de um cheiro e de um gosto. É porque nas suas mãos havia sempre outras mãos, é por falta de um abraço meio que lento e meio que rápido. Ela pode até ser fraca, mas eu entendo esse olhar envergonhado na rua, como quem se perdeu e não está achando o caminho de volta. Se essas pernas tremem, eu entendo que é porque havia sempre alguém que lhe guiava e hoje ela tem que seguir seus próprios pés, que se perdem por conhecer o caminho de uma só casa. Se alguém tocasse suas mãos, sentiria um suor escorrendo na roupa, mas um suor diferente daquele que ela enxugava com vergonha e cheia de nervosismo. Se é da vontade dela ir embora, deixem. Que ela parta pra um lugar onde outros rostos a vejam, outras bocas a chamem, outros perfumes lhe marquem e outros pedaços lhe caibam. Assim como eu, sozinha, pude voltar a caber em mim.
Boa sorte.
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